Para muitos professores, as técnicas de karate são a verdade absoluta, a expressão da perfeição.
Os mestres do passado, para alguns, eram os detentores das verdades absolutas, e as técnicas por eles desenvolvidas são imutáveis, exatamente por serem perfeitas.
Sou um completo apaixonado por karate. Todos que me conhecem pessoalmente, ou mesmo pelo YouTube ou Instagram, percebem rapidamente minha paixão pela arte marcial que mudou a minha vida. Pratico o karate Shotokan desde os 13 anos de idade, sem jamais ter passado mais de um mês afastado dos treinos. Mas sempre me causou estranheza essa verdadeira adoração pelos mestres do passado. Admiração, respeito e gratidão, isso eu compreendo. Sinto o mesmo em relação àqueles que criaram e desenvolveram as técnicas que eu treino hoje. Mas acreditar que tudo que eles diziam era certo, e que qualquer coisa diferente é errado... isso eu já acho um exagero.
Tudo no mundo evolui. Todos os esportes, lutas, atividades profissionais, tudo mudou nos últimos 50, 100 anos. O mundo evoluiu, as pessoas evoluíram. A troca praticamente instantânea de informações tem feito com que essa evolução se acelere, e o mundo corra cada vez mais rápido.
Aos 47 anos de idade, ainda peguei uma época onde cada casa tinha apenas uma televisão (ás vezes nem era à cores, mas sim preta e branca); eu comprava discos de vinil e fitas K7 para escutar música; vi a grande revolução que foi a chegada dos CDs, hoje completamente obsoletos; presenciei o fim da inflação galopante no Brasil, os vídeos cassetes darem lugar aos aparelhos de DVD e finalmente à TV a cabo e aos streamings; Cresci em uma época sem internet; vi os primeiros celulares-tijolos, que só faziam ligações e nada mais.
Presenciei a ascensão do jiu jitsu, que através de desafios e, posteriormente pelo UFC, venceram diversos combates mano a mano contra lutadores de outras modalidade. Isso virou o mundo da luta de cabeça para baixo. O Vale-tudo, atual MMA, mudou para sempre a percepção das lutas no mundo inteiro.
Aprendi karate ouvindo que só o karate Tradicional era bom, e que o da WUKO (atual WKF) era muito fraco. Eles não sabiam nada, e só os lutadores mais fracos estavam lá. Eu acreditava.
Quando vi uma fita VHS de um campeonato mundial de karate Tradicional, perguntei inocentemente: "Onde estão os japoneses?". Escutei uma resposta que me impressionou: "O Japão não é mais tão bom no karate.. ficaram muito para trás.
Eu acreditei...
Ao aprender mawashi geri com o koshi, tive muita dificuldade em executar, principalmente jodan (no rosto). Com o peito do pé, eu chutava o saco de pancada com muito mais força. Curioso, perguntei por que não podia chutar mawashi com o peito do pé. "Porque é muito fraco. Com o koshi é muito mais forte"
Eu acreditei.
Eu achava que sabia tudo nessa época, do alto da minha faixa marrom, com 5, 6 anos de prática.
Eu, na verdade, sabia tão pouco que achava que sabia tudo.
Era o efeito Dunning-Kruger (para quem não conhece, vale uma pesquisa no google)
Com o passar dos anos, aumentando minha experiência, treinando com pessoas de fora da minha academia, competindo em torneios cada vez maiores, fui percebendo que as coisas não eram exatamente da forma como eu havia acreditado.
Os japoneses ainda eram fortíssimos, apenas não estavam mais no karate Tradicional. estavam na JKA, na WKF, na JKS...
A WKF não era fraquinha, mas sim um celeiro de grandes atletas, dificílimos de serem enfrentados em qualquer regra.
O mawashi geri com peito do pé não era mais fraco, mas sim mais perigoso, pois era mais rápido e muito mais fácil de ser aplicado (me tornei um exímio chutador de mawashi geri)
E comecei também a questionar técnicas antigas, que percebia serem um pouco defasadas no contexto atual dos atletas de kumite, que cada vez são mais rápidos e versáteis.
Nas competições, enfrentei atleta da WKF, ITKF, JKS, JKA, Interestilos... cada um com sua forma de se mover e de fintar, cada um com seus golpes preferidos.
Enfrentei atletas de quase 30 países.
Tudo isso me fez compreender que a minha verdade era muito pequena. E que, talvez, eu precisasse abrir meus horizontes e compreender que havia muita coisa boa que eu ainda não conhecia.
Comecei então a treinar com o sensei Vinicio Antony, e mergulhei em um mundo desconhecido. O mundo do MMA.
Lembro-me da primeira vez que ele me disse que era melhor puxar o hikite na guarda, e não na cintura. Olhei de cara torta, não acreditando nele. Ele apenas sorriu.
Depois de apanhar por algumas semanas, finalmente acreditei nele.
Essa foi a segunda fase do efeito Dunning-Kruger, quando eu aumentei muito meu conhecimento, e comecei a achar que, na verdade, eu não sabia de quase nada...
Atualmente, procuro mostrar algumas diferenças que faço em meus treinos de kumite, em relação aos treinos clássicos que aprendi há décadas. Essa diferenças me ajudaram a vencer diversas vezes o título brasileiro de kumite, e me ajudaram a alcançar um nível de competitividade que eu jamais imaginei chegar.
Mas percebo que muita gente fica ofendida. Ofendida pelo simples fato de eu ousar querer modificar algo que os mestres desenvolveram há cem anos.
Minhas alterações nada têm a ver com os treinos clássicos de kihon ou de kata. Esses treinos são padronizados.
Para os katas, há uma série de livros padronizando-os, na JKA: em relação ao kihon clássico, o manual dos instrutores da JKA fala sobre bases, ângulos, sobre a posição correta dos pés e dos punhos.
Sobre kumite, o manual tem apenas um parágrafo.
Por que?
Porque o kuminte é seu.
Como bem disse o sensei Roberto Pestana (6º dan JKA, instrutor internacional classe A): " kata e kihon são livros. O kumite é poesia..."
Poesia, que cada um faz da forma que achar melhor.
Cada um deve encontrar seu próprio caminho no kumite, da forma que mais se ajuste ao seu biotipo. Deve encontrar sua táticas e a melhor forma de treiná-las.
O deai que eu faço pode ser diferente do que o de algum atleta de ponta da WKF. E nenhum de nós será o dono da verdade absoluta. A evolução nasce da discussão, da divergência.
O tipo de treinamento de kumite, que agrega elementos particulares de cada professor, não deve ser considerado uma afronta aos mestres do passado; em vez disso deve ser visto como uma homenagem ao karate, que deve seguir evoluindo junto com o mundo em que vivemos. Do contrário, o karate ficará para trás e será esquecido...