quarta-feira, 23 de agosto de 2023

IV Campeonato Pan-americano de Karate JKA 2023

 


Aconteceu, entre os dias 18 e 20 de agosto de 2023, na capital da Colômbia, Bogotá, o IV Campeonato Pan-americano de Karate JKA.

Com a presença de cerca de 500 atletas das Américas, esse foi um dos campeonatos com o nível mais alto, em todas as categorias. O Brasil levou a maior delegação com 96 atletas, um recorde que enche de orgulho a JKA do Brasil!

No sábado, as categorias de base, até 18 anos, os atletas demonstraram maturidade e experiência, apesar da pouca idade. Katas e lutas de altíssimo nível emocionaram o grande público presente. O Brasil, sempre muito forte nessas categorias, manteve a escrita de conquistar muitos títulos tanto no kata quanto no kumite.

Lutando contra a altitude, os atletas não se deixaram abalar, e mesmo com falta de ar, garantiram uma chuva de medalhas para o Brasil.

Gostaria de escrever sobre cada um dos participantes do Brasil, sobre cada um dos medalhistas. Mas o espaço é limitado e muitas as categorias! Escolhi então dois momentos que ilustram o espírito inabalável da nossa Seleção.

Manuela Vianna, 13 anos, tinha sido muito prejudicada ao não ser devidamente chamada para fazer o kata, mesmo tendo o técnico brasileiro o tempo todo na beira do koto, e mesmo todos percebendo que o barulho no ginásio era ensurdecedor. Ela foi ignorada, e não pode tentar o bicampeonato pan-americano (fora campeã em 2022). Muitos teriam desistido da categoria seguinte, o kumite. Muitos teriam dito que estavam abalados demais para lutar depois desse erro grave do evento. Muitos adultos teriam simplesmente desistido.

Mas não Manu....

Ela se acalmou rapidamente depois desse imenso abalo psicológico, e voltou. Lutou com todo seu coração, e saiu do torneio com a medalha de bronze. Pouco, se pensarmos no potencial da atleta. Mas muito se pensarmos no quanto ela se superou para buscar essa medalha.

Arhur Castilho (PA), lutava em uma das categorias mais cheias do evento - o 15/16 anos masculino.

Fiquei impressionado com o nível dos 33 atletas da chave, que faziam lutas impressionantes, inclusive com alguns knockdowns e ippon que não deixam nada a desejar se comparados com as lutas adultas.

Um a um, Arthur foi vencendo seus adversários, aplicando inclusive um ippon que poucas vezes vi igual, e consagrou-se campeão depois de vencer 5 adversários de forma incontestável!

Esses dois representam o espírito de todos os atletas, que foram fundamentais para colocar o Brasil no pódio em quase todas as categorias.


No domingo, as categorias máster, e o principal, o adulto.

No máster, eu poderia escrever 200 linhas e ainda não seria suficiente.

Poderia contar em detalhes como Mário Cadena conquistou de forma brilhante o título no kumite acima de 61 anos; detalhar cada luta que Pedro camacho fez para conquistar o bicampeonato em uma das categorias mais difíceis, o kumite masculino 40-45 anos; poderia escrever sobre as medalhas de Luciana Metzker e Tatiana Duque, ou ainda sobre as lutas incríveis de André Sampaio e Edson Luciano, dignas de grande finais da categoria adulto; gostaria de escrever 5 parágrafos sobre o Unsu impressionante de Marcio Stein, que trouxe mais um ouro para o Brasil...

Fica aqui registrada a profunda admiração por esses atletas que superam inúmeras dificuldades só para estarem ali, competindo, e ainda conseguem um desempenho de dar inveja e ajudam o Brasil a se firmar como uma das principais potências do karate dentro das Américas.

ADULTO

No feminino, já era esperado um nível altíssimo, como tem sido em todos os pan-americanos JKA.

No kata por equipes, as campeãs brasileiras de 2023 Letícia Bastos, Jéssica Araújo e Martinna Rey conseguiram repetir o desempenho excelente do brasileiro nesse pan. Conquistaram a prata, logo atrás das argentinas. A sincronia das atletas foi de encher os olhos. A estreante na Seleção, Jéssica Araújo, não mostrou nervosismo e provou estar à altura do desafio, compondo com suas companheiras uma equipe que por muito pouco não ficou com a medalha de ouro.


No individual...

Eu poderia ser preguiçoso, e copiar e colar o texto que escrevi ano passado, sobre o pan-americano do Chile.

Poderia me repetir, dizer as mesmas coisas.

E a culpa não seria minha! Não seria por acomodação, falta de inspiração ou simplesmente pressa. Nada disso.

A culpa seria da atleta, Manuela Spessatto.

Sim, culpa dela. Culpada por ser campeã todo ano, desde 2012; culpada por seguir treinando cada vez mais, tentando melhorar e jamais se acomodando com a coroa de campeã.

Culpada por ser infalível.

A jóia da nossa Seleção, a nossa certeza em todos os campeonatos continentais desde 2008, mais uma vez ficou com a medalha de ouro naquela que provavelmente é a categoria mais difícil: o kata individual feminino adulto.

São agora 4 títulos nos 4 pan-americanos (2018/2019/2022/2023), além de mais 5 títulos sul-americanos (2008 / 2012 / 2013 / 2015 / 2016). Apenas 9 vezes campeã nas Américas. Apenas...



No kumite individual, as brasileiras foram vencendo dos dois lados da chave. De um lado, Letícia Bastos passou pela companheira de Seleção, Débora Nascimento, no confronto das 8 melhores. Nessa mesma chave, Martinna Rey só não avançou porque nocauteou a adversária, e infelizmente houve um excesso de contato (nariz quebrado) que fez com que fosse desclassificada (hansoku).

Do outro lado da chave, Manuela Spessatto e Sara Ladeira se classificaram, colocando assim, três brasileiras entre as 4 melhores!

Julieta Villarino (Argentina), uma das lutadoras mais técnicas do evento, conseguiu passar pela atual tricampeã brasileira JKA, Letícia Bastos, e esperou pelo confronto brasileiro na oura semi. Sara Ladeira conseguiu uma vitória sobre a duríssima Manuela Spessatto, que luta com a mesma intensidade e qualidade com que faz kata.

Na grande final, a argentina conseguiu levar o ouro em uma luta muito, mas muito apertada mesmo! Foi apenas no detalhe, depois de uma troca de golpes, que ela ficou com o título. Vitória merecida de uma atleta excepcional.



No kumite por equipes, arquibancada lotada na torcida pelas brasileiras em uma final muito esperada: Brasil x Argentina.

Sara Ladeira abriu a disputa. Em uma luta emocionante, venceu a fortíssima argentina Ayelen, abrindo 1 x 0 para a equipe do Brasil. Lutando com uma energia incrível, a paulista saiu do koto e energizou suas companheiras.

Melhor brasileira na chave individual, ela não sentiu o peso da responsabilidade: pelo contrário, usou isso como combustível para pressionar a argentina e ficar com a vitória.

Letícia Bastos foi a segunda.. Apesar de ter disputado as quatro categorias (kata individual e por equipes, kumite individual e por equipes), a baiana não demonstrou nem um pingo de cansaço, muito pelo contrário. Ela perdeu por 2 x 1, e mesmo com a derrota, manteve a energia positiva das brasileiras, pela qualidade da sua luta.

Manuela Spessatto fecharia a disputa, enfrentando a argentina campeã individual.

Juliana Villarino vinha cheia de moral. Segura, consciente e empurrada pela animada torcida argentina, ela pisou no koto com a certeza de que daria o título para o seu país.

Mas se tinha alguém preocupado com o resultado dessa luta, se enganou. Manuela venceu a argentina por 2 x 0, conquistando o ouro pra a equipe feminina!

Eu, da beira do koto, confesso que senti uma emoção que poucas vezes senti em minha carreira de atleta. Não tenho como descrever o orgulho que senti, a honra em ter estado ao lado das meninas nessa final.




MASCULINO

No kata individual, consguimos classificar dois atletas entre os 8 melhores das Américas: Lucas Coimbra e Leão Mazur.

Lucas acabou pisando fora do koto em sua apresentação do Gojushiho Sho, e isso fez com que sua nota - que certamente o colocaria no pódio -, ficasse mais baixa, tirando suas chances. Leão Mazur ficou em 5º lugar, e deixou de medalhar por apenas 2 décimos.

O argentino Federico Hussein se firma cada vez mais como um dos melhores atletas de kata do mundo, e acredito que ficará entre os 8 melhores do mundo no Japão em 2024.


No kata por equipes, o time brasileiro conseguiu se classificar para a final, repetindo a excelente atuação que lhes deu o título brasileiro de 2023.

Rogério Higashizima, Andrew Marques e Luan Caio conquistaram a medalha de bronze. Infelizmente ainda não foi dessa vez que a hegemonia argentina nessa categoria foi quebrada.

Os hermanos venceram o kata por equipes 12 vezes em 14 edições do campeonato continental da JKA (o Brasil ficou com os títulos em 2010 e 2015)


No kumite individual, mais de 70 atletas na chave.
Cada luta era como uma final, e passar cada rodada uma grande conquista.
Diego Andrade foi o único brasileiro a se classificar entre os 8 melhores das Américas, feito que já havia conquistado em 2022 (medalha de bronze) e em 2013.
Infelizmente Diego foi superado por um argentino em uma luta muito disputada, vencida pelo hermano no detalhe, e não conseguiu repetir o pódio do ano passado.

O recordista em participação entre os 8 melhores das Américas segue sendo o brasileiro Jayme Sandall, com 7 vezes (2002 / 2007 / 2008 / 2012 / 2018 / 2019 e 2022), seguido pelo chileno Rodrigo Rojas (2012 / 2013 / 2015 / 2016 / 2018 e 2022) e pelo brasileiro Rafael Moreira (2005 / 2007 / 2008 / 2009 / 2015 e 2016).

Entre os 4 finalistas, 3 argentinos e um chileno. Na grande final, o atleta argentino mais veterano ficou com o título, em uma final cheia de reviravoltas. 
Ismael Schneider ficou com o título pela primeira vez em sua carreira.

No kumite por equipes, Ismael liderou os argentinos, que, em uma semi-final de tirar o fôlego, empataram contra os atuais campeões. Depois das 5 lutas, persistiu o empate entre Argentina e Chile. Os chilenos mandaram Julio Silva, que ficou entre os 8 melhores do mundo em 2017, e veterano de sua equipe, enquanto os argentinos mandaram Ismael. Nessa disputa, Ismael conseguiu a vitória por 2 x 0, levando seu time á final.

Na outra chave, o Brasil pegou os donos da casa em uma disputa que incendiou as arquibancadas. Nunca vi uma energia tão grande vindo das arquibancadas, e até do staff de apoio dentro do ginásio!
Mas os brasileiros souberam equilibrar as emoções e venceram por 5 x 0.

Era hora da grande final, e, a exemplo do feminino, o maior clássico das Américas na JKA: Brasil x Argentina.
Os hermanos vinham embalados pela excelente participação no individual. Mas os brasileiros estavam focados e se preparando para essa luta.
Da beira do koto, atuando pela primeira vez como um dos técnicos, e não do lado de dentro lutando, senti emoções conflitantes.

É muito difícil ficar de fora!
Por outro lado é bom poder ter uma visão mais clara das coisas, poder traçar uma estratégia mais racional.

Vi, com imenso orgulho, a equipe brasileira lutar de uma forma irrepreensível.
João Lima abriu a disputa, na posição que foi minha por mais de duas décadas: Senpo, a primeira luta da equipe. E ele representou perfeitamente o espírito do lutador que abre a disputa. Empatou em um confronto de tirar o fôlego!
Em seguida, o melhor lutador brasileiro do individual, Diego Andrade. O brasileiro saiu atrás, mas teve calma, frieza e competência para empatar, entregando para Matheus Cirillo, campeão brasileiro de 2019 e 2022.
Matheus levou um wazari, o que gelou os companheiros de equipe. Mas ele não se abalou, e conseguiu virar a luta! Brasil estava na frente.
Luis Fernandes, estreante na Seleção Brasileira adulta, entrou na grande final, e, apesar do esmagador peso da responsabilidade, lutou como poucos lutariam: atitude, garra, velocidade e coragem. O argentino conseguiu a vitória por 2 x 0, deixando os hermanos na frente (pelo critério de desempate, a vitória por 2x0 vale mais que a vitória por 2x1 de Cirillo)
Peterson Lozinski entrou precisando vencer a qualquer custo.
Diante dele, o campeão individual, Ismael Schneider.
Peterson não se deixou intimidar pelo recém campeão, e conseguiu trazer o adversário para uma armadilha, obrigando-o a atacar. O brasileiro foi muito frio e inteligente para marcar seu primeiro wazari.
Depois disso, poderia ter posto tudo a perder fugindo, recuando, com medo de levar o empate. Mas ele marcou o segundo ponto selando de vez a vitória brasileira e trazendo o título de kumite por equipes masculino de volta para o Brasil depois de 7 anos.


Comissão técnica IV CAMPEONATO PAN-AMERICANO DE KARATE JKA 2023
- Supervisão técnica: sensei Machida e sensei Kazuo Nagamine
- técnico geral: Fábio Simões 
- técnicos: Carolina Zampa, Roberto Pestana, Wagner Pereira, André Sampaio e Jayme Sandall 

CORPO DE ARBITRAGEM:
- sensei Alfredo Aires
- sensei Ruy Koike
- André Reis, Norberto Sgavioli e Roberto Batista



RELATO PESSOAL

"Foi minha primeira competição como técnico, apenas técnico. Eu já tinha sido técnico outras vezes, mas também competia.
As coisas que senti me remeteram à época em que fui treinador de MMA do Vitor Belfort, quando o preparava para luta que eu mesmo não iria disputar...
 Nessa época, quis muito lutar MMA, cheguei a me preparar< mas meu ombro esquerdo sempre se metia no caminho, com dores que me lembravam que eu jamais poderia fazer uma luta agarrada, correndo risco de encerrar minha carreira à menor chave de braço ou clinche mais forte...
Eu aceitei isso. Aceitei que seria apena treinador daquela modalidade. Mas eu tinha minhas competições de karate para compensar, para me sentir atuante, para me fazer um atleta de luta - meu sonho de criança.

Dessa vez, pela primeira vez, um técnico completamente aposentado das competições.
Foi muito, muito bom mesmo.
Emocionalmente desgastante, mas compensador demais. Me entreguei 200 %, lutei com cada atleta que eu estava do lado, no koto; fiz cada kata junto, vibrando com o kime e com a base firme, rezando para as notas serem altas...
Me emocionei, senti raiva, frustração, felicidade, vontade de chorar.

E, durante o adulto, veio a vontade de lutar....
a fortíssima vontade de estar ali dentro. De colocar meu kimono, minhas luvas, o esparadrapo no dedo do pé, passar vaselina no rosto, encaixar o protetor de boca; dar o meu pulo de preparação e virar de frente para meu adversário, completamente cego e surdo para tudo que fosse de fora daquele koto.
Que saudade, meu Deus...
Que vontade de lutar, seguir competindo até não poder mais andar, até onde minha foças me levassem.

Por outro lado, ver os atletas, ajudar nem que seja com uma palavra, um abraço, uma energia, uma dica; nem que seja trazendo água ou conferindo a chave. Senti que ajudei, 1, 2, 3%. Mas me senti ali, competindo junto.
Essa energia acalmou meu coração de lutador e controlou minha vontade.

Agora é lutar dentro da academia, com meus alunos, que vão "sofrer" lutando comigo até eu não poder mais andar, até minhas pernas falharem quando eu for bem velhinho (tomara...).
Enquanto eu tiver forças para ficar de pé, seguirei lutando.."